Tinha eleições na Venezuela todos os anos. Pode se falar que existe Democracia?

Continuo por aqui me aprofundando nas causas da Crise na Venezuela. Para ler os outros post sobre este assunto pode clicar aqui.

Então vamos lá...

Conforme todos aprendemos na escola, num sistema democrático, deve existir uma clara separação de poderes. Seguindo a teoria, os três poderes que formam o Estado (poder legislativo, executivo e judiciário) devem atuar de forma separada, independente e harmônica, mantendo, no entanto, as características do poder de ser uno, indivisível e indelegável. (1)

Desta forma, estas instituições tem uma estrutura clara de ação: o parlamento aprova as leis, o presidente as executa e a suprema corte as interpreta e resolve disputas. Isto está estabelecido em boa parte das constituições do mundo, incluindo a venezuelana. 

O objetivo dessa separação é evitar que o poder se concentre nas mãos de uma única pessoa, para que não haja abuso, como o ocorrido no Estado Absolutista, por exemplo, em que todo o poder concentrava-se na mão do rei. A passagem do Estado Absolutista para o Estado Liberal caracterizou-se justamente pela separação de Poderes, denominada Tripartição dos Poderes Políticos. (2)

Consequentemente, com base no principio da Separação de Poderes, um poder deve ser capaz de debater ou, em alguns casos, enfrentar o outro, sem comprometer a ordem ou a civilidade de uma nação. No entanto, em alguns países da América Latina, não é assim que o governo trabalha e os desvios das disposições da Carta Magna se tornam cada vez mais comuns.

Nos últimos anos, o mundo foi testemunha de como o governo de Nicolás Maduro tem ignorado totalmente o parlamento democraticamente eleito da Venezuela, coberto por uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que declarou desprezada a legislatura. O Supremo Tribunal até assumiu as responsabilidades da Assembléia Nacional, alegando que esta última estava numa situação de desacato. (Este último fato explica por que Juan Guaido, não é um presidente "autoproclamado". Ele foi eleito pela Assembléia Nacional legitimamente eleita pelo povo venezuelano).

Mas vamos rememorar um pouco como tem sido os acontecimentos.. 

Em dezembro de 2015, a oposição recuperou o controle da Assembléia Nacional (AN) pela primeira vez desde o ano 2000. Como consequência disso, na Venezuela, vem acontecendo o que parece uma longa luta de boxe. Por um lado, o Poder Legislativo e, pelo outro, o poder Judiciário, que tem tomado decisões que tendem repetidamente a favor do governo do presidente Nicolás Maduro.

Em janeiro de 2016, o TSJ (Supremo Tribunal de Justiça) declarou em "desacato" à Assembleia Nacional, devido a um recurso introduzido pelo PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela, que é o partido do Governo do Maduro). 

Durante as eleições de dezembro de 2015, o PSUV solicitou ao TSJ a impugnação da eleição de 3 deputados opositores do Estado Amazonas, alegando compra de votos. Naquele momento o TSJ emitiu uma medida cautelar e logo, em janeiro de 2016, uma vez juramentados os deputados pela AN, o PSUV introduziu uma nova denuncia alegando o desacato, a qual foi legitimada pelo TSJ, declarando que todos os atos da nova Assembleia Nacional seriam nulos enquanto os deputados opositores impugnados continuassem juramentados.   

Esta situação de favorecimento do Supremo Tribunal ao Governo, data desde a época do falecido Hugo Chávez. Em 2016, o Daniel Pardo, do Jornal BBC Mundo em Caracas, sinalizou que o TSJ não tinha falhado em contra do governo nenhuma vez, nos últimos nove anos, considerando mais de 40.000 sentenças.

Em maio de 2017, o Maduro convocou uma Assembleia Constituinte, em meio de uma forte crise econômica e política, marcada por protestos antigovernamentais, quase diários (nesse ano teve mais de 150 mortos e milhares de feridos durante quatro meses de manifestações de rua (3)). 

Em termos práticos, uma Assembleia Constituinte é um parlamento de caráter temporário, especialmente elegido para escrever ou reformar a Constituição de um país. 

Mas qual foi a razão de fundo para isso? A elecção de uma nova Assembleia Constituinte (já teve uma em 1999 convocada pelo Chávez) implicaria a dissolução do atual parlamento, e eliminava a possibilidade de contrapeso por parte da oposição. 

Em julho desse mesmo ano, a oposição realizou uma consulta popular, convocado pela Assembleia Nacional, na qual os venezuelanos votaram massivamente rejeitando a iniciativa de alteração da constituição. (Em 1999 quando o Chávez convocou a Constituinte, o fez, com base numa consulta popular, o Maduro interpretou que não era necessária esta consulta). 

Abaixo podem ver imagens (fotos autorais) do processo feito na cidade de Belo Horizonte, aqui no Brasil. Teve votações massivas na Venezuela e em diversas cidades do mundo onde tem migrantes venezuelanos. 

Sobre os abusos de poder na Venezuela e falta de separação de poderes

De acordo com a MUD (Mesa da Unidade Democrática), que é uma aliança de partidos de oposição da Venezuela, uns 7,6 milhões de venezuelanos se manifestaram no processo contra a Constituinte. 

Mesmo assim, o Governo, continuou com seu processo e celebrou eleições da Assembleia Constituinte, declarando uma votação de 8 milhões de venezuelanos, sem a participação da oposição, que qualificou o processo de ilegítimo.

Nessa época, a empresa Smartmatic, responsável pelo sistema de votação eletrónica empregada nas eleições da Assembleia Constituinte (e de todas as eleições anteriores desde o ano 2004) denunciou que "teve manipulação dos dados de participação". O Diretor Executivo da empresa afirmou que estimava que "a diferença entre a quantidade anunciada e a informada pelo sistema era de pelo menos 1 milhão de eleitores".

Uma dezena de países, dentre eles EUA, Peru, Colômbia e o Brasil, também desconheceram o processo. Porém, os governos da Bolívia, El Salvador e Nicarágua sinalizaram o seu apoio à Assembleia Constituinte do Maduro. 

3 anos depois, não tem sido apresentada uma nova Constituição, o que demonstra que o processo foi uma artimanha para se manter no poder, confirmando a ilegitimidade do Maduro, que após "ganhar" a Presidência numas eleições claramente fraudulentas, não tomo posse frente à Assembleia conforme manda a Constituição, mas perante o Supremo Tribunal, o que foi utilizado como argumento para a nomeação do Guaidó como Presidente Interino.  

A advogada Laura Louza, diretora da ONG Acesso à Justiça, declarou ao diario El País que dentre os atos mais polêmicos deste orgão, se encontra a "Lei contra o Odio", que foi uma das primeiras leis sancionadas em 2017 (tem sido criadas 12 leis, 63 decretos e 53 acordos). Esta lei, tem sido utilizada para criminalizar o protesto, o dissentimento, a atividade dos partidos políticos e cercar ainda mais a liberdade de expressão. "Esta lei transforma em delito o direito a se manifestar, num delito gravíssimo para o qual estabelece penas de 20 anos" sinaliza a Laura. Nos últimos antos, com base nesta lei, tem se incrementado significativamente a lista de presos políticos do Maduro, chegando quase ao milhar. Este número só decresceu por conta da pressão internacional. 

O número de presos políticos na Venezuela já passou dos 1000, só diminuiu por conta da pressão internacional!


Sobre os processos eleitorais:

Adicionalmente, á situação do Poder Judiciário, temos um Conselho Nacional Eleitoral (CNE) descaradamente a favor do Governo. 

O Jornal Efecto Cocuyo relata que só uma vez, a Diretoria do CNE foi definida pela AN, conforme está definido na Legislação Eleitoral. Em quatro ocasiões, a designação do CNE foi realizada pelos magistrados da Sala Constitucional (2003, 2005, 2014 y 2016), e numa ocasião foi realizada pela Assembleia Nacional Constituinte (1999) e numa outra foi realizada por integrantes da Comissão Legislativa Nacional (Congresillo).

Em 2 ocasiões a designação foi realizada pela Assembleia Nacional (2006 e 2009), porém em 2009 a designação violou a disposição da lei eleitoral e é considerada ilegítima. Neste caso particular, as retoras eleitorais Socorro Hernández e Tania D'Amelio eram militantes do partido do governo (PSUV) até 48 horas antes da designação, sendo que o artigo 296 da Constituição Nacional estabelece que o CNE deve estar integrado por 5 pessoas não vinculadas a organizações com fins políticos. 

A organização Sumate, introduziu um recurso de nulidade em 26 de novembro de 2009 perante o TSJ (Supremo Tribunal de Justiça). A designação foi impugnada em sete ocasiões, porém o Tribunal não se pronunciou.

A única designação de retores do CNE, que foi feita conforme a lei, aconteceu em 2006, quando foram designados como representantes da sociedade civil a Sandra Oblitas, o Vicente Díaz e a Tibisay Lucena.

Em 2014, o Diosdado Cabello, que presidia nesse momento a AN, deveria renovar os reitores da sociedade civil eleitos em 2006 e cujo período tinha culminado em 2012, porém o TSJ informou que para evitar uma "crise institucional" assumiria novamente a designação dos reitores, ratificando à Lucena e Oblitas e designando ao Luis Emilio Rondón em substituição do Vicente Díaz, até 2021.

Conclusão:

A crise na Venezuela é um processo de uma grande complexidade, que até para os venezuelanos é muito difícil de entender. Teve uma grande conjugação de fatores que favoreceram a instauração e permanência de um sistema que levou à maioria da população a uma situação de dependência do Estado para a cobertura das necessidades mais básicas. Na minha opinião, ainda virão muitas descobertas e estudos para explicar como chegamos na situação atual. 

Tem um livro muito interessante que chama "Bumerán (bumerangue) Chávez" onde o jornalista do ABC da Espanha, Emili Blasco conta, como este colapso institucional, econômico e social não é produto da dilapidação do "legado do Comandante Chávez" como muitos alegam, senão uma consequência direta das suas políticas. O bumerangue justamente mostra como o benefactor dos pobres, é o grande responsável pela escassez, inflação e violência que sofre o país, especialmente suas classes populares. O livro revela detalhes dos principais capítulos da fraude do chavismo: a entrega da soberania a Cuba, o engano eleitoral, a corrupção sem precedentes, o Narco-Estado, dilapidação do petróleo, vínculos com o terrorismo, etc.  O livro está baseado num trabalho investigativo exaustivo, que inclui declarações de pessoas vinculadas ao "chavismo", que colaboraram com as autoridades de EUA, no regime de Delação premiada.

Ao meu ver, tiveram grandes erros do lado da oposição, que obviamente também tinha uma grande ânsia pelo poder. Por uma parte, existiu a subestimação do inimigo (muitos achamos que não sabiam o que estavam fazendo e sempre souberam), por outro lado, a segmentação da oposição em lugar de trabalhar unidos com um candidato único em contra do Chávez (quando chegaram nessa conclusão foi muito tarde) e finalmente, um grande erro que estabeleceu um precedente importante foi a decisão da oposição venezuelana de convocar o povo a se abster nas eleições do parlamento em 2005 visto que já naquela época havia sérias dúvidas sobre o imparcialidade do Conselho Nacional Eleitoral. 

A votação registrou uma abstenção sem precedentes de 75% e, com isso, a oposição deu de presente o controle do Estado ao Hugo Chávez. Com um congresso de "amigos", ele teve a oportunidade de cumprir todos os seus caprichos.

Na imagem abaixo, o desenhador venezuelano Eduardo Sanabria, melhor conhecido como @edoilustrado mostra brilhantemente a nossa realidade. Quer reclamar? Vai lá na justiça (é do Maduro), vai no árbitro eleitoral (é do Maduro), vai nas forças armadas (são do Maduro). Todos os poderes comprados e envolvidos num esquema de corrupção e até narcotráfico.

Se você tiver alguma reclamação, pode direcioná-las 
às autoridades competentes (Todas com o bigode do Maduro)

Deixo adicionalmente o link do artigo sobre as sanções dos EUA e a corrupção na Venezuela neste link

Um comentário :

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